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Publicado em 21/12/2017 as 4:00pm

'Vocês roubaram minha irmã': irmãos separados por adoção sonham com reencontro na Europa

Numa cabana construída com lençóis no quarto de um apartamento em Brasília, Joana* arrisca...

Numa cabana construída com lençóis no quarto de um apartamento em Brasília, Joana* arrisca palavras em italiano, recebe o carinho dos novos pais e experimenta, ainda com certa desconfiança, a sensação de ser cuidada. Decidiu que fará aulas de balé na Itália, com uma prima que ainda não conhece, mas por quem já nutre curiosidade e afeição.

Na noite seguinte, a brincadeira foi espalhar os colchões na sala. Pai e mãe adotivos deitam rodeados de brinquedos, para que a menina adormeça com a segurança de que não está sozinha.

Enquanto isso, de volta ao abrigo, Pedro* recebe a mochila, as roupinhas e os brinquedos que tinha ganhado daqueles que quase se tornaram seus pais. Ouve em silêncio a notícia de que não vai ser mais adotado. Mas reage mal ao saber que a irmã vai seguir com o processo de adoção e morar longe.

"Vocês roubaram a minha irmã!", chora. Nos braços dos psicólogos e auxiliares do abrigo e da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal, ele desabafa, grita, bate nas paredes... Aos poucos se acalma.

O menino coleciona perdas nos seus 11 anos de vida - a separação dos pais biológicos, a perspectiva frustrada de ter uma nova família e o adeus à irmã.

Mas a história dele é só uma entre tantas outras semelhantes nos abrigos do Brasil. Por causa da esmagadora preferência de brasileiros por adotar bebês, crianças com mais idade têm dificuldade de encontrar uma família que as acolha.

Mais de 78% dos candidatos do Brasil à adoção só querem meninos e meninas de até 5 anos, segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção.

As crianças que não são adotadas no Brasil são encaminhadas para os comitês de adoção internacional, que tentam encontrar um lar para elas entre estrangeiros que se cadastram em associações internacionais credenciadas.

A adoção fora do país é vista como a última chance de conseguir um lar, já que estrangeiros impõem menos restrições em relação a idade, cor e sexo. Porém, nem sempre o processo segue adiante após o chamado "estágio de convivência", período de cerca de três meses em que os potenciais pais trocam cartas, telefonemas e depois passam algumas semanas com a criança no Brasil.

Cartas, brinquedos e sonhos

Pedro e Joana viveram seis anos num abrigo de Brasília. Em 2017, a Justiça do Distrito Federal deu a decisão definitiva de destituir a mãe do poder familiar - usuária de drogas, ela não tinha condição de cuidar das crianças.

Os irmãos foram, então, encaminhados para a Comissão Distrital Judiciária de Adoção, órgão responsável por casar os perfis de candidatos a adotar com o das crianças disponíveis nos abrigos.

Sem famílias brasileiras interessadas em acolher os dois, por não se enquadrarem no perfil exigido pelos candidatos, eles foram encaminhados para a adoção internacional.

Pouco depois, um casal italiano foi selecionado e o processo de aproximação, com supervisão de psicólogos teve início, em junho deste ano.

Empolgadas, as crianças começaram a fazer aulas de italiano com uma voluntária da Rede Solidária Anjos do Amanhã, órgão da Vara da Infância do DF que faz parcerias com o setor privado para oferecer cursos de idiomas, atendimento psicológico, estágios e outras oportunidades aos meninos e meninas dos abrigos.

Do outro lado do mundo, os futuros pais tentavam aprender português. Amigos e familiares dos italianos acompanharam a preparação e fizeram uma festa "à brasileira", para comemorar a futura adoção.

Cartas, fotos, desenhos e presentes foram trocados, até que os italianos desembarcaram no Brasil para conhecer os meninos. O primeiro encontro, em outubro, foi numa brinquedoteca.

"No terceiro dia do estágio de convivência, as crianças manifestaram o desejo de pernoitar com os requerentes, de modo que, no dia do desligamento do abrigo, estavam felizes pela partida", diz um relatório da Comissão de Adoção.

Crises

Cafés da manhã na padaria, tardes na piscina, brincadeiras no parquinho... Os quatro exploravam os pequenos lazeres da cidade enquanto tentavam construir os primeiros laços afetivos.

Tudo ia bem até que, depois da primeira semana no apartamento alugado pelos italianos, em Brasília, Pedro começou a apresentar "angústias e sofrimentos". Segundo o relatório da Comissão Distrital de Adoção, as crises, que incluíam tapas nas paredes, choro e gritos, eram desencadeadas quando o menino tinha algum desejo contrariado.

Enquanto os adultos tentavam conter o garoto, Joana sofria com o medo de que os italianos desistissem da adoção.

"Joana mostrou-se receosa, conforme o casal, talvez temendo o rompimento da relação parental que se iniciava e por perceber o sofrimento do irmão e não saber como agir", afirma o relatório.

A futura mãe adotiva tentava acalmar a menina, repetindo que "tudo acabaria bem para todos". Para a psicóloga que acompanha Pedro, as crises eram causadas por um "conflito de lealdade" do garoto, que passou a sentir que estaria traindo a mãe biológica ao aceitar a ida para a Europa e a adesão definitiva à nova família.

A quase ida para a Itália

Os italianos tentaram se adaptar às crises do menino e buscaram a orientação de psicólogos para lidar com a situação. Uma festinha de despedida para os irmãos chegou a ser agendada no abrigo. Professores e colegas da escola pública onde os dois estudavam também marcaram um dia para comemorar a adoção.

Todos estavam felizes em saber que as duas crianças teriam um futuro de oportunidades e o carinho de uma família. Mas, com a proximidade da partida, o garoto piorou e passou a ter mais episódios de choro, nos quais pedia para ir embora.

Os italianos passaram a questionar a capacidade que tinham de cuidar dele e acabaram tomando uma decisão - não seriam pais de Pedro.

Estavam dispostos, porém, a continuar com a adoção de Joana, que parecia adaptada e feliz com a ideia de ter uma família. Consultada sobre se queria ir para a Itália sem o irmão, a menina disse que sim. Fez só um pedido: que tentassem ao máximo arrumar outra família para o irmão na Europa, para que pudessem ficar perto.

Embora seja muito nova, demonstrou saber claramente as consequências de crescer num abrigo, sem pai, nem mãe. "Eu preciso cuidar da minha vida. Acho que eles dão conta de cuidar de mim", disse ela aos membros da Comissão Distrital de Adoção.

Para os assistentes sociais, era preciso garantir à menina o direito de ter uma família, ainda que isso significasse a separação do irmão.

"Vale dizer que não havia qualquer desabono em relação ao casal requerente, o qual demonstrou desde o início do estágio de convivência ser amoroso, respeitável e ter condições suficientes para assumir os encargos próprios da maternidade/paternidade com relação à infante a qual, por sua vez, não demonstrou qualquer desconforto ou dúvida acerca do desejo de ser adotada pelos requerentes", afirmou a Comissão de Adoção, ao recomendar que o juiz autorizasse a ida de Joana à Itália.

A despedida

Pedro retornou ao abrigo. Alguns dias depois, recebeu lá as roupinhas e presentes que tinham ficado no apartamento do casal. Joana continuou com os italianos, para completar o período de convivência que antecede a adoção.

Às vezes, durante as brincadeiras, ela ficava, de repente, em silêncio, cabisbaixa. Em outros momentos, precisava se reassegurar de que os pais adotivos não a deixariam e pedia a companhia deles na hora de dormir.

Foi então que os italianos começaram a inventar formas criativas - cabana de lençóis e 'acampamento de colchões'- para entreter a menina e passar a ela a segurança de que a decisão sobre a adoção estava tomada.

No dia 24 de novembro, Joana voltou ao abrigo, mas só para visitar. Queria brincar e se despedir do irmão. Os dois se divertiram juntos sem falar do futuro. E, ao final, cada qual seguiu o seu caminho - um deles repleto de esperança e acolhimento, na Itália, e o outro de espera e incerteza.

Pais diferentes, mas no mesmo país

A Vara da Infância e Juventude do DF e a Comissão Judiciária de Adoção vão continuar a procurar um lar para Pedro.

"Não podemos prejudicar a menina, que já está adaptada e disse claramente que quer ficar com a família. O menino vai ter acompanhamento psicológico, para ficar mais preparado, e vamos tentar arrumar outra família para ele", disse à BBC Brasil o juiz Renato Rodovalho Scussel.

A missão não é fácil, mas é possível. Foi o que o juiz fez no caso dos irmãos Fernando, hoje com 11 anos, Juliana, 12 anos, e Jaqueline, 15 anos. Fernando foi adotado por Lia Carosi Simei, 51 anos, e Massimiliano Simei, 48 anos, em 2014, quando tinha sete anos, e foi morar na cidade de Monterotondo, na Itália.

As duas irmãs do menino ficaram no abrigo, mas logo todos puderam se rever. Seis meses depois da adoção de Fernando, Jaqueline e Juliana foram adotadas por outro casal italiano e se mudaram para Piacenza.

As duas famílias passam férias juntas e os três irmãos se reúnem sempre que possível. "O Fernando mantém contato com as irmãs na Itália e, todas as vezes que se pode, nossas famílias passam férias juntas. Os meninos se amam muito e querem ficar juntos sempre que possível, mas não sofrem de saudade", disse Massimiliano à BBC Brasil.

Das ruas, ao abrigo, ao lar na Itália

O menino carinhoso e de sorriso fácil não transparece vestígios de uma primeira infância triste. Ele chegou aos nove meses num abrigo em Brasília, mas era visitado de vez em quando pela mãe biológica.

Uma vez, segundo relato do pai adotivo, ela levou Fernando do abrigo sem autorização - ele tinha um ano e meio na época. Pouco depois, a mulher deixou o menino com o pai biológico. Passados dois anos, o homem deixou a criança sozinha na rua.

"O Fernando conta que uma mulher e o marido dela, que era da polícia, o acharam e levaram a um abrigo. Ele tinha 3 anos e meio", relata Massimiliano. Aos 5 anos, trocaram Fernando de abrigo para que ele pudesse ficar com as irmãs, Juliana e Jaqueline.

Dois anos depois, o menino recebeu a notícia de que poderia ser adotado por um casal italiano.

O primeiro encontro

O pai se lembra com detalhes do dia em que conheceu Fernando, em Brasília, após meses de trocas de mensagens e fotos.

"O primeiro contato foi no restaurante Mangai, em Brasília. Ele chegou junto com as assistentes sociais, tímido, com mãos nos bolsos e um chapeuzinho com uma viseira para cobrir um pouco o rosto", relata.

Fernando contou aos pais, depois, que sentiu muito "medo e felicidade ao mesmo tempo", ao conhecer aqueles que poderiam dar a ele um lar e uma família tão longe do Brasil.

"Diferentemente dos relatos dos assistentes sociais, que falavam de uma criança que não aceitava contato físico, ele foi imediatamente feliz nos nossos abraços e carinhos", conta o pai adotivo, emocionado.

"A convivência começou linda. Massimiliano e Lia novos pais no mundo! De um lado, conhecíamos um dia após o outro os medos, as capacidades, a inteligência e os sonhos do pequenininho. De outro, ele conhecia a capacidade, o amor, a paciência e os limites dos novos pais."

Nova vida

Fernando se acostumou rapidamente com a vida na Itália. "A adaptação foi maravilhosa, porque depois de um mês ele falava italiano com seus primos e seus amigos", conta o pai adotivo.

O menino tem boas notas em todas as matérias da escola, adora esportes e toca piano. "O Fernando tem uma energia incrível e tem ótimos resultados em todos os esportes, estuda piano e tem muito talento nisso."

"Ele diz que é brasileiro e também italiano de Roma", conta. O pai adotivo diz que, no início, chegou a pensar em adotar uma criança pequena, de idade pré-escolar.

Mas ao ouvir os relatos de outros casais que adotaram no Brasil, ele e a esposa decidiram se abrir para a possibilidade de adotar uma criança com mais de cinco anos.

"Todos os pais adotivos contavam das dificuldades, de desentendimentos, do cansaço, mas também falavam o quanto as suas crianças era maravilhosas. Percebemos que uma criança mais velha seria mais compatível com a nossa idade. Pode ser difícil, mas ao mesmo tempo a criança mais velha é capaz de falar com você, se comunicar e ajudar na construção da família".

Massimiliano aconselha os pais adotivos a terem paciência e não caírem no erro de encarar o filho como adulto. Eles são crianças com medos e anseios, mas também com uma enorme capacidade de amar, destaca o italiano.

"Com amor e paciência, cuidem de seu filho, eduquem e repreendam quando necessário. Pode acontecer de um dia ele dizer que vocês não são pais dele. Nunca duvide de que vocês são, sim, os pais. E repita isso para ele."

Três anos após a adoção do Fernando, Massimiliano não tem dúvidas sobre a solidez do laço de pai e filho. "O meu filho é tudo para nós. É como se sempre tivesse sido nosso filho, como se tivesse nascido na nossa família. É um amor imenso."

A fila de adoção

Atualmente existem 40 mil pessoas cadastradas na fila de adoção no Brasil, sendo que cerca de 300 são estrangeiras, segundo o Cadastro Nacional de Adoção. É um número muito maior de interessados em adotar do que de crianças disponíveis - apenas 8 mil.

Então por que as crianças sobram nos abrigos e não encontram um lar? Porque a grande maioria dos interessados em adotar - oito em cada 10 - está na "mesma fila", ou seja, querem apenas bebês ou crianças de, no máximo, cinco anos.

Enquanto isso, 73,74% das crianças e adolescentes que buscam um novo lar têm entre 5 e 17 anos. Outro problema recorrente são irmãos com vínculo afetivo entre si.

Os juízes tentam manter as crianças juntas, mas, como ocorreu com Pedro e Joana, às vezes a oportunidade só aparece só para um deles. Entre os brasileiros na fila para adotar, 65% não aceitam levar irmãos para casa. Já a maioria dos estrangeiros na fila- 52,75%- aceita adotar irmãos.

"Temos mais procura por crianças do que crianças disponíveis. Mas as famílias interessadas têm restrições. No Distrito Federal, temos cerca de 70 crianças e adolescentes, mas ninguém para acolher esses meninos e meninas", diz Thais Botelho, secretária-executiva da Comissão Distrital Judiciária de Adoção.

"Acredito que muitos casais brasileiros se inscrevem para adotar com a ideia de substituição do filho natural, por isso buscam bebês", avalia o juiz Renato Rodovalho Scussel.

"Existe também um tabu de que a criança mais velha tem traumas. Mas quando você trabalha a questão de que a adoção é uma relação de afetividade, você consegue desconstruir aos poucos os tabus e desmistificar. É verdade que algumas crianças deixadas pelos pais têm traumas, mas o afeto muitas vezes supera isso."

*Os nomes dos irmãos separados na adoção foram trocados para proteger as crianças, já que o menino continua no abrigo e a menina acaba de ser adotada.

Fonte: Nathalia PassarinhoDa BBC Brasil em Londres

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